terça-feira, 20 de março de 2007

Pó-de-arroz

Por Amanda Osti, em 13/3/2007

As agulhas estavam à direita. É interessante como elas eram compridas – o suficiente para atravessar as gargantas dos homens travestidos de gueixas que performatizavam no palco. Leques enormes seguravam, tão pontiagudos que eram como as agulhas – talvez pressentindo um fim não tão secreto. As minhas leituras gritavam um pouco em risos frenéticos e desenfreados ante a pobreza de minha imaginação onírica – a saturação do fantástico torna teu sonho tão clichê... Ninguém se abalaria mais com uma performance travesti-gueixacoólotra com agulhas deliciosamente dispostas para um rito negro de transgressão visual. Talvez quisera meu subconsciente ter sonhado algo assim para impressionar alguém, posteriormente, em um colóquio com pseudo-intelectuais, no qual as pessoas (não) se expõem em todo o seu absurdo psíquico.

Mas o fato é que as agulhas eram compridas. Deliciosamente compridas. Senti-me como um bárbaro ocidental em guerra, violando o oriental, o desconhecido, o imanipulável. Imaginava-me, sim, no utilizar-me das agulhas. Elas iriam perpassar com certa facilidade o pomo-de-adão... Peguei uma. Seu brilho saía metálico e difuso entre as lâmpadas orientalmente empapeladas, talvez fruto de alguma alucinação lisérgica das leis da física. Ri de minha idéia, pois Raskolhnikov não queria matar a velha por fetiche no alheio, e sim por uma fantasia de si mesmo... Por que eu queria matar? Não, eu não queria matar. Eu apenas queria ver o filete de sangue resultante do trespasse da agulha dos(as) performatizadores(as)... Filete suave e rubro como uma fita. É esteticamente bonito é dá uma boa construção imagética. Bom assunto para um conto, e até mesmo para uma conversa de pseudo-intelectuais. Lisergias de um metal fino e comprido...

Meu pensamento mandou-os(as) parar. Porque eu quero que estejam bem estáticos(as) para meu grande delírio estético. Sonho e involuntariamente compreendo. E porque eu não compreenderia? Clarice fez-se compreender por incompreender. Joana queria arremessar um livro sobre o velho... Eu queria torturar uma voz pseudo-masculina. Perversidades e lisergias de um metal fino e comprido em um pescoço de pó-de-arroz... Maculado por um filete vermelho.

O(a) gueixo(a) do meio. Sim, hei de furar-vos... Porém o que era ambíguo virou um fato concreto e masculino. Ansiava pela transgressão da pintura facial, mas fui tomada de medo. Porque eu consegui o que eu queria, e não queria reconhecer o que eu queria... Ele toma meu pescoço com suas mãos finas e pontiagudas e deseja reciprocidade.

Não há de furar-me, pois quem fura sou eu...

... Não, não fura. Empurra-me e lança-se com meu corpo para o fundo de alguma água que ali estava e eu não percebia. Quem fura? Não, ele não fura... Muito menos eu, que aceito o não furar, porém afogar, da falsa gueixa. Transgressor. Lisergia de dedos finos e compridos. Olho para ele, sem esboçar qualquer reação. Aceito, sim, afogar-me... Pois olho no fundo de seus olhos e percebo que o rosto se me parece confiável demais. Familiar... Os olhos de malignidade de agulhas de luzes lisérgicas sobre meu abatimento.
Olhos meus. Meu rosto malévolo ria ante ao meu rosto subjugado. Duplos. Leituras que riem, reinvenções que se vingam. Fechei os olhos e finalmente fui dormir em paz nas profundezas das águas.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2007

O vendedor de tristezas

por Márcio Cenzi

O vendedor de tristezas trabalha no viaduto que liga o centro à cidade baixa.

Por mais de quarenta anos, seu estabelecimento ladeou com a prefeitura. Era o tempo em que as tristezas eram o principal produto do país, propícias ao seu clima árido.

No exterior, a imagem de sua terra era sempre associada a nativos taciturnos e pesarosos.

Nessa época, o governo investiu esforços, chegou a criar um instituto de pesquisa para aprimorar a produção.

Em todas as cidades, havia casas especializadas em que as pessoas se sentavam e bebericavam cerimoniosamente a sua dose. Em seu município, o vendedor era dono do maior e mais especializado entreposto.

Mas veio a Revolução – ou o Golpe, como prefere a desgostosa percepção do comerciante – e tudo o que dizia respeito às tristezas foi destruído ou proibido.

Por algum tempo, o comerciante tentou abrir uma portinha num velho prédio, mas os sorridentes soldados agiram ostensivamente para que o homem desistisse da empreita.

Depois de algumas risonhas advertências, os guardas resolveram apelar à tortura. Levaram o velho à delegacia. Lá, deixaram-no despido e percorreram seu corpo com uma imensa pena de pavão. Mas o homem não ensaiou sequer um esgar de lábio. Antes, contraiu ainda mais as feições, enlutado pela colorida ave.

De outra vez, trancaram-no num quarto com lindas e alegres jovens. Mas o vendedor nada fez. Apenas lastimou a insensatez das moças que criam no passageiro júbilo de suas mucosas.

Muitas foram as tentativas. Ao fim, o último recurso: encaminharam-no ao chefe de polícia.

O comissário, que desde menino conhecia o vendedor, tratou-o com respeito e tentou explicar a mudança dos tempos. Disse-lhe que, além da ilegalidade do produto, as tristezas não poderiam vicejar, pois o país estava diferente, gozoso, jovial. Arrematou dizendo que até as nuvens se regozijavam e ofertavam a água escassa.

- A chuva é o choro do céu – desdenhou o vendedor.

Como o convencimento era difícil, o comissário astutamente desafiou:

- Mas que motivos temos hoje para as tristezas?

- Não estar morto sufaz como motivo – respondeu o merencório, utilizando verbo proscrito no novo regime.

Incontornável a obstinação do negociante, o chefe de polícia riu de soslaio e decidiu esperar pela morte do homem.

Mas correram vinte anos e o vendedor resiste. Nesse tempo, o comissário se tornou seu freguês e já vagou o posto.

É possível encontrar a pequena bancada no viaduto, entre os outros contrabandistas tolerados pelo governo. Reconhecê-lo é fácil, pois o vendedor de tristezas é do tipo de negociante que consome a própria mercadoria.

Camuflada entre os pães, os bolos e o café, há uma caixa de chá contendo pequenos pacotes que servem à infusão. Entre as essências, o vendedor oferece desilusão, luto, angústia, remorso e outros mais. Porém, o produto principal ainda é a substância pura.

Consomem-na as prostitutas da cidade baixa, os polícias, os meninos do supermercado. Dizem que mensageiros buscam o preparado para levar ao prefeito. Mas isso não se pode provar ainda.

O que mais entristece o vendedor é saber extinta sua descendência – o filho, enganado pela propaganda dos golpistas, engrossou o bonomioso exército.

Teme que um dia não suporte e, cedendo ao tolo sorriso, feneça sem deixar um sucessor que cultive o siso.