segunda-feira, 19 de fevereiro de 2007

O vendedor de tristezas

por Márcio Cenzi

O vendedor de tristezas trabalha no viaduto que liga o centro à cidade baixa.

Por mais de quarenta anos, seu estabelecimento ladeou com a prefeitura. Era o tempo em que as tristezas eram o principal produto do país, propícias ao seu clima árido.

No exterior, a imagem de sua terra era sempre associada a nativos taciturnos e pesarosos.

Nessa época, o governo investiu esforços, chegou a criar um instituto de pesquisa para aprimorar a produção.

Em todas as cidades, havia casas especializadas em que as pessoas se sentavam e bebericavam cerimoniosamente a sua dose. Em seu município, o vendedor era dono do maior e mais especializado entreposto.

Mas veio a Revolução – ou o Golpe, como prefere a desgostosa percepção do comerciante – e tudo o que dizia respeito às tristezas foi destruído ou proibido.

Por algum tempo, o comerciante tentou abrir uma portinha num velho prédio, mas os sorridentes soldados agiram ostensivamente para que o homem desistisse da empreita.

Depois de algumas risonhas advertências, os guardas resolveram apelar à tortura. Levaram o velho à delegacia. Lá, deixaram-no despido e percorreram seu corpo com uma imensa pena de pavão. Mas o homem não ensaiou sequer um esgar de lábio. Antes, contraiu ainda mais as feições, enlutado pela colorida ave.

De outra vez, trancaram-no num quarto com lindas e alegres jovens. Mas o vendedor nada fez. Apenas lastimou a insensatez das moças que criam no passageiro júbilo de suas mucosas.

Muitas foram as tentativas. Ao fim, o último recurso: encaminharam-no ao chefe de polícia.

O comissário, que desde menino conhecia o vendedor, tratou-o com respeito e tentou explicar a mudança dos tempos. Disse-lhe que, além da ilegalidade do produto, as tristezas não poderiam vicejar, pois o país estava diferente, gozoso, jovial. Arrematou dizendo que até as nuvens se regozijavam e ofertavam a água escassa.

- A chuva é o choro do céu – desdenhou o vendedor.

Como o convencimento era difícil, o comissário astutamente desafiou:

- Mas que motivos temos hoje para as tristezas?

- Não estar morto sufaz como motivo – respondeu o merencório, utilizando verbo proscrito no novo regime.

Incontornável a obstinação do negociante, o chefe de polícia riu de soslaio e decidiu esperar pela morte do homem.

Mas correram vinte anos e o vendedor resiste. Nesse tempo, o comissário se tornou seu freguês e já vagou o posto.

É possível encontrar a pequena bancada no viaduto, entre os outros contrabandistas tolerados pelo governo. Reconhecê-lo é fácil, pois o vendedor de tristezas é do tipo de negociante que consome a própria mercadoria.

Camuflada entre os pães, os bolos e o café, há uma caixa de chá contendo pequenos pacotes que servem à infusão. Entre as essências, o vendedor oferece desilusão, luto, angústia, remorso e outros mais. Porém, o produto principal ainda é a substância pura.

Consomem-na as prostitutas da cidade baixa, os polícias, os meninos do supermercado. Dizem que mensageiros buscam o preparado para levar ao prefeito. Mas isso não se pode provar ainda.

O que mais entristece o vendedor é saber extinta sua descendência – o filho, enganado pela propaganda dos golpistas, engrossou o bonomioso exército.

Teme que um dia não suporte e, cedendo ao tolo sorriso, feneça sem deixar um sucessor que cultive o siso.